O art. 2, inciso I da Lei nº 11.101/05, que disciplina o procedimento de recuperação judicial e falência, expressamente define que empresas públicas e sociedades de economia mista não se submetem a esse trâmite.

Apesar da sujeição geral ao regime jurídico de direito privado, as empresas estatais apresentam especificidades normativas que as aproximam substancialmente da Administração Pública e do regramento próprio de direito administrativo – ainda mais quando exercem atividade econômica em regime não concorrencial.

A matéria, que parecia sedimentada pela norma específica, foi posta em reexame pela Empresa Municipal de Serviços Obras e Urbanização de Montes Claros (ESURB), no RE nº 1.249.945/MG, em 2020.

Ou seja, o recurso extraordinário da empresa pública, contra acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que rejeitou a admissibilidade do procedimento para a estatal, permitiu a análise do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso, sobre a constitucionalidade do dispositivo legal que prevê a vedação.

Embora ainda não definida a questão pela Corte Constitucional, os Ministros realizaram juízo positivo de admissibilidade do recurso no que tange a configuração de repercussão geral, Registrando o expediente sob o Tema 1101.

Um dos argumentos essenciais para o reconhecimento da repercussão geral foi a percepção de que a vedação do art. 2, inciso I, da Lei de Recuperação Judicial e Falência, potencialmente afronta o art. 173, § 1º, inciso II, da Constituição da República.

Esse dispositivo consagra a igualdade entre os tipos empresariais ao instituir que as estatais se sujeitam ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Norma que, apenas pelo critério hierárquico, aparentemente, deveria prevalecer sobre a vedação da própria Lei nº 11.101/05.

A despeito da plausível resolução da questão por simples normas de hermenêutica, o debate toma contornos de complexidade quando verificado que, ainda que prevista a igualdade entre estatais e empresas privadas, essa nunca foi substancial.

As normas infraconstitucionais que regulamentam as empresas públicas e sociedades de economia mista apresentam, igualmente, regramento específico e diverso daquele que rege as empresas privadas. Isto é, desde o seu surgimento e forma de criação as estatais se distanciam em diversos aspectos das empresas privadas, representando, na verdade, regime intermediário entre o administrativo e o de direito privado.

A exploração da atividade econômica do estado atribui às pessoas jurídicas instituídas com esse propósito diversos privilégios que não se estendem às empresas privadas, inclusive benefícios fiscais e acesso a recursos públicos. Em contrapartida, estão sob o jugo do controle administrativo, orçamentário e licitatório, bem como aos princípios gerais do direito público.

Apesar de bastante extensa, a Lei nº 13.303/16, não dispõe sobre mecanismos de recuperação financeira para as estatais. Daí a relevância do debate.

Diante da omissão legislativa sobre a matéria, muitos defendem a simples subsunção das estatais ao normativo civil geral. Porém é preciso considerar as implicações práticas e jurídicas dessa equivalência. Na interpretação conforme a constituição ou analise de inconstitucionalidade do dispositivo, é esperado que o STF avalie as diferenças essenciais que distinguem empresas sob o regime de direito civil com flerte administrativo daquelas puramente civilistas.

Caso verificada possibilidade de recuperação judicial de estatais pela inconstitucionalidade do art. 2º, inciso I, da LREF, será preciso delimitar sobre quais tipos de empresas esse parâmetro se aplica. Seria estendido a todas ou apenas para sociedades de economia mista? Aplicável apenas às empresas em regime concorrencial, ou às prestadoras de serviço público essencial também? Quais as consequências práticas sobre os cofres públicos nesse procedimento de reestruturação financeira?

A tese está longe do seu deslinde, ainda que transcorridos quase cinco anos do reconhecimento da repercussão geral ao recurso, os questionamentos supra destacados não encontram retorno da Corte Constitucional. Ainda assim, a posição que demonstra maior razoabilidade é a corrente jurídica que afirma a necessidade de regramento próprio para empresas estatais.

Da mesma forma que seu surgimento e estatuto é regulado por lei própria, igualmente deveria ser sua reestruturação financeira, independentemente da conclusão sobre a constitucionalidade ou não da vedação imposta pela própria Lei de Recuperação Judicial e Falências. Afinal, ainda que declarada a inconstitucionalidade seria ideal, diante da separação dos poderes, que o encargo disciplinar pormenorizadamente a matéria recaia sobre o  Congresso Nacional.

 

 

Escrito por BIANCA LUCENA SIMÕES